Não sei que te diga. Não sei que te escreva. Devias conhecer-te melhor. Tens de saber não olhar tão fundo dentro de ti. Senta-te e escreve-te no papel. Senta-te e esventra-te na direcção da folha. Esfrega as tuas entranhas bem fundo com a ajuda da caneta. Sabes mais do que pensas. Pensas mais do que deves. Achas-te pouco capaz. Pouco te sentes cheia. Sabes o que queres longe. Não tens a certeza do que está por vir. Alguém terá a certeza do que está por vir? Não sei que te diga. Ouve a música e fica contigo e com ela. Sabes que sentes qualquer coisa. Não percebes aquilo que sentes. É palpável. E no entanto foge-te das mãos quando o tentas agarrar para olhar de perto. Examinar com os olhos de dentro. As mãos não páram. Sempre a escrevinhar. A mente não pára. Sempre a ditar pensamentos. Sempre a sussurrar medo nos meus ouvidos. Sopra-os bem dentro de mim. Não sei cuspir os nervos. Quem me dera saber tirar o receio de dentro de mim. Tirá-lo com as lavagens. Pôr-me na banheira e esfregar-me muito bem esfregadinha. Até fazer vermelhidão. Arrancá-los de mim com os vapores da água que dói na pele. Não sei que mais te diga. Não sei que mais te escreva. Devias tentar conhecer-te melhor. Não pode ser assim tão fundo o abismo dentro de ti.
Levantei-me pareceu-me a melhor palavra para começar esta história. É com o levantar que as coisas acontecem. Começa o dia porque nos levantamos da cama. Podem ser quatro da tarde, mas se ainda não removemos o corpo dela, se ainda nos recusamos a levantar, o dia não é dia ainda. Nada começa sem que nos levantemos.
Se queremos estar sozinhos, porque nos dói seja lá o que for – uma perna, ou, mais frequentemente, o coração - levantamo-nos.
Se as nossas peles parecem, de repente, demasiado pequenas para nos conter nelas e à raiva - que nos nasce no recanto mais obscuro do nosso ser -, levantamo-nos. Por norma para nos jogarmos a alguém. Para podermos arrancar de nós tanta agonia na forma de violência e – por norma – deixá-la cair em cima daqueles que mais queremos em nosso redor.
Quando um amor - que pareceu amor num início de outrora - deixa de ser amor para passar a ser estupidez, levantamo-nos. Nem sempre, devo dizer. Mas das vezes que não o fazemos estamos apenas à espera do apercebimento. Do apercebimento que nos falta de que o amor é, de facto estupidez, mas não o género da que nos senta no chão ao lado de alguém que nos olha do cimo de um falso trono.
Não que saiba alguma coisa sobre amor ou coisas relacionadas. Mas o que sei é que, tantas vezes chamamos amor a coisas que não são amor. Porque não sei o que é o amor, mas sei muito bem o que não é.
O amor não é saber o que a outra pessoa faz de hora a hora. O amor não é fazer ciúmes em troca de sentir amor. E o amor não é andar de olhos no chão, em constante fingimento de conhecermos o amor, mesmo com uma nódoa negra de quando – desastradamente – fomos contra a porta de casa.
Mas esta não é uma história sobre amor. Na realidade, esta não é uma história sobre nada em particular. Sejamos realistas, isto nem é sequer uma história.
O que encontras aqui, querido leitor, sou eu. Eu sozinha com o barulho da vida. Com a textura dela. E a paisagem que ela me proporciona.
Estas palavras são palavras que talvez nem façam sentido. Mas são aquelas que as minhas mãos quiseram fazer aparecer na minha frente. E isso só quer dizer que as acho importantes. Ou então que não podia querer saber menos delas.
Não interessa o que estas palavras significam. Interessa que elas estejam aqui, porque assim foi que aconteceu, senão não estariam a ser lidas.
Acabo esta história - que história não é - com a mesma palavra com que comecei.
Porque aquela com que a comecei é aquela com que a vida começa. E por isso, aquela com a qual eu começo.
Um dia chegaste a casa e disseste-me do nada que as flores já não tinham o mesmo cheiro.
Respondi-te a verdade, todos os dias desde que as temos as rego da mesma forma, nem uma gota a menos nem uma gota a mais.
Depois começaste a dirigir-te para mim de forma diferente, às vezes acho que não estavas pronta para cuidar das flores, foi a frase com que me atiraste que se cravou no meu coração como um espinho no dedo.
Daí em diante o sangue jorrou cada vez mais, as flores ficaram vermelhas e as palavras cinzentas.
Não mais me acho capaz de suportar o preto e branco quando me acostumaste ao arco-íris, não mais aguento o cheiro do que é podre e só mais podre fica com o passar do tempo, quando me habituaste ao perfume das flores.
Um dia, de súbito e sem aviso, senti uma picada no peito. Sem reparares espreitei para dentro, à procura de males possíveis, e vi, ali cravado no meu coração, o teu espinho, agora já desaparecido, tudo o que restava era sangue e mais sangue.
Não resta mais nada que vermelhidão e dor, viremo-nos para onde nos virarmos deixamos pegadas de sangue, a poça vai já tão grande estendida entre nós, no chão, nas paredes, no tecto, em nós.
Deixei de te conseguir ver por baixo de tanto podre, nem sei se ainda aí estás, chamo o teu nome em agonia mas não me apareces, tudo o que os meus olhos me mostram são o horror, o assassínio que se deu em nós.
Sentas-te com toda a calma, de olhos pousados no chão quando costumavam deitar-se em mim.
Sinto-te tão longe mas sei que observas cada movimento que faço, ergo a mão do regador, mas o sangue escorre-me cada vez com mais velocidade pelo braço abaixo.
Tremem-me os dedos, já mal se seguram, não sei quanto mais tempo aguento, não sei quanto mais sangue me resta, não sei se consigo recuperar da agonia que o vermelho me traz.
Não sei quantas mais flores conseguirei salvar, acima de tudo e de mais importância, não sei se ainda queres que as salve.
Estava alguém na cadeira à minha esquerda, com as tuas rugas, as pantufas que te pertenciam a ti e a ti só, o teu roupão, numa pessoa que poderia ser qualquer uma menos tu.
A vida já não vivia dentro de ti, mas escorria-te pelas rugas da cara. Deixara de ser um bicho inquieto no profundo do teu ser, ventos e tempestades nas cavernas do teu coração. A vida para ti, sabia-o bem, tinha-se aventurado no início do seu derradeiro fim, sem que nada houvesse a meu alcance, ou dos que te rodeavam, para uma tentativa de recuperação, de limpeza de males dispensáveis.
Sentada ao lado daquela que não eras tu mais, soube-me perdida.
Os olhos com que me vias eram nada mais que abismos. Olhar para eles como quem tenta encontrar o fundo de um poço, sem cansaço, a querer acreditar que existe um fundo e que algo lá se deita, alguém ainda, que talvez se chamarmos nos oiça.
Receei não ter-te nunca mais como mais te queria, como sempre foste.
E como sempre, como todos nos encolhemos à passagem do incerto e duvidoso, do medo, sempre o medo e o medo acompanhados de mais medo. O medo que sempre nos faz pensar que o que não fizermos agora, o passo que não dermos, as palavras que não deixarmos ir passear lá fora, arejar até aos ouvidos dos outros, nos hão-de atormentar até ao fim dos nossos dias, minutos, segundos.
Foi esse mesmo medo que me empurrou.
Roubaram-me a roupa do estendal, disse-te.
E roubaram-me os sapatos. Levaram-me a comida, à frente do meu nariz, que burra fui, roubaram-me a cama, fiquei sem livros.
Fui roubada, avó.
Sento-me aqui a teu lado, incompleta como nunca antes estive. Bem sei que incompleta ando sempre, mas desta vez, e desta vez apenas, sei que metade desse sentimento, dessa solidão assombrante que não me larga nunca, se deve ao facto de ter sido roubada, à minha frente, sem ter podido fazer nada, sem o evitar, ou mais grave, sem o querer de forma alguma evitar.
Olhaste-me quase como se nada fosse.
Não esperava aplausos, mas a reacção que me ofereceste não foi suficiente para me aquecer a alma nem um pouco.
A razão era muito simples e estava à vista para todos verem.
Não eras tu, simplesmente a pessoa, o corpo que iludia com a ideia de que te carregava lá dentro, não te trazia, a tua essência havia sido perdida, e perdida estava também a minha esperança de te voltar a encontrar nos teus olhos, de não ver abismos e ver oceanos de vida.
Aos poucos os oceanos tiveram o seu retorno.
Como me tremem as mãos só de pensar que te não tive por momentos, por dias, por semanas, e que a esperança me escorregava do ser e desaparecia sabe-se lá para onde. Abismos, talvez.